quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Coetzee e Foster Wallace: acadêmicos sem fraque – por Antônio Xerxenesky

IMS | 26.12.2011, 19:18
Comecei a compilar, mentalmente, casos de autores que criticam o mundo acadêmico. O número de escritores que adota esta postura é tão grande que arrisco dizer que isso se tornou uma tendência das letras contemporâneas. Há, por um lado, os casos bastante diretos, como o de Jonathan Franzen, em As correções, e o de Zadie Smith em Sobre a beleza. Ambos os autores praticam um realismo muito próximo do romance de costumes, e suas críticas são sempre através do comportamento de seus personagens. Há outros escritores, no entanto, que passaram por uma mudança de paradigma. Iniciaram suas carreiras fascinados por teoria literária e foram progressivamente abandonando esta paixão, até se tornarem críticos de várias facetas da academia. É o caso, acredito, de David Foster Wallace e J.M. Coetzee.
***
O jargão acadêmico está na raiz da obra de David Foster Wallace, seja a ficcional ou a ensaística. Graduado em filosofia e obcecado por lógica, Wallace fez das notas de rodapé peças onipresentes em seu texto. O autor americano também usa vários termos comuns em dissertações e teses, mas que geram estranheza em contos, como “i.e.”, “[sic]”, “ref.” “cf.”.
O primeiro romance de DFW, The broom of the system, foi vítima do fascínio pelo mundo acadêmico, pelo menos na opinião do autor. Na longa entrevista que cedeu a David Lipsky, Wallace conta que o seu editor sugeriu uma mudança no final de The broom of the system, e o escritor respondeu o editor com uma carta de dezessete páginas explicando como aquele final representava uma conversa entre Derrida e Wittgenstein, entre presença e ausência. O editor aceitou a argumentação e não mudou o final. Em 1996, ano da entrevista com Lipsky, Wallace demonstra ter mudado de ideia. “Quer saber? É um documento teórico brilhante, mas um final de merda”. O autor justifica o que considera ser o “fracasso” do livro no fato de que, para escrevê-lo, não conseguiu se soltar de seus laços com a teoria literária: “Eu estava com quatrocentas mil páginas de filosofia continental e teoria literária na cabeça, e eu iria usar isso para provar que era mais inteligente do que ele”. Para encontrar sua voz como ficcionista, Wallace considera que precisou se libertar das amarras acadêmicas – e fez, pelo menos em minha leitura, uma crítica particularmente venenosa à teorização exagerada em seu conto A pessoa deprimida, incluído no livro Breves entrevistas com homens hediondos. Neste conto, a história da pessoa deprimida em questão é progressivamente “dominada” por notas de rodapé, que tomam espaço na página e lotam o texto de um jargão que não consegue dizer nada, de fato, sobre aquela pessoa. Mas é claro: Wallace faz estas críticas “de dentro”. Professor universitário, o autor americano parece sentir, no mesmo nível, atração e repulsa por teoria – seja esta filosófica, psicanalítica ou literária.
Conversando com o escritor Vinicius Castro, especialista em Foster Wallace e interlocutor valioso deste meu texto, ele apresentou o seguinte insight sobre o assunto: “Acho que ele [DFW] tinha uma atração enorme pela academia e pela abstração intelectual sofisticada, mas também um medo enorme de soar pretensioso e de se deixar seduzir pelo jargão automático e o palavrório vazio. Talvez por isso ele equilibrasse os tiques de i.e., e.g. e n.b. com o registro bastante informal e cheio de gírias. Querendo soar como um professor de Oxbridge de boné virado pro lado e skate debaixo do braço. Acho que dá para dizer que ele localizava inautenticidade nesses registros muito pretensiosos e auto-envolvidos (embora tivesse algum gosto por eles), assim como no manuseio retórico da publicidade e na autoconsciência hipertrofiada dos personagens dele. Nada escapava, afinal de contas”.
***
Mais interessante e complexo é o caso do sul-africano J.M. Coetzee. Em seu fascinante livro de ensaios Doubling the point (1992, infelizmente nunca lançado no Brasil), diz não ser um filósofo “treinado”, e que sente maior liberdade procurando respostas teóricas na ficção do que na crítica. Ainda assim, os ensaios de Doubling the point estão mergulhados em teoria pesada. Um exemplo é o caso do ensaio sobre The burrow, de Kafka, um artigo excelente no qual o autor sul-africano analisa os tempos verbais empregados pelo escritor tcheco para tentar compreender como funciona o tempo na obra de Kafka. É curioso observar que a compilação de ensaios que Coetzee lançou quinze anos depois, Mecanismos internos, não tem quase nada de teórico. O autor sul-africano era muito mais fascinado por teoria pesada, acadêmica, forrada de referências a Derrida e Foucault, no início de sua carreira.
Também precisa ser analisado o fato de que o primeiríssimo livro de Coetzee, Dusklands, já começa com um jogo metaficcional – e a metaficção (o artifício de expor que certo texto é ficcional, o que pode se dar de várias formas, geralmente colocando um “livro dentro do livro”) tem profunda ligação com o pensamento acadêmico. Coetzee, em Doubling the point comentará que “a metaficção logo perde sua atração” e que “escrever sobre escrever não oferece muito prazer narrativo (e não sou ascético ao ponto de renegar o prazer narrativo)”. No entanto, apesar deste comentário, o autor sul-africano nunca abandonou este dispositivo literário, e continuou utilizando-o (e revolucionando-o) até em seus livros mais recentes, como Diário de um ano ruim.
Ainda assim, sinto que Coetzee passou por uma mudança de paradigma, no sentido de que começou a carreira como um entusiasta do mundo acadêmico tendo, depois, abandonado esta perspectiva. Como possível prova para a hipótese que levantei, apresento o caso de Foe/Elizabeth Costello.
Em Foe (1986), Coetzee reconta a história de Robinson Crusoé do ponto de vista de uma mulher, que teria sido excluída da história por Daniel Foe (que ainda não se chamava Defoe). Foe, em inglês, significa inimigo, e aqui teríamos um caso exemplar de um narrador masculino que, ao contar a história, apaga traços e constrói a sua versão da história, que passará a ser encarada como “oficial”.
Porém, em Elizabeth Costello, de 2003, Coetzee nos apresenta sua alter ego,  Elizabeth Costello, que escreveu um livro onde conta a história de Ulisses do ponto de vista da mulher, isto é, de Molly Bloom. A ligação deste livro fictício com Foe é bastante óbvia. O detalhe é que em Elizabeth Costello a personagem-título se vê perseguida no primeiro capítulo por acadêmicos que tentam extrair dela opiniões acadêmicas e posições políticas que ela, autora, não é capaz de oferecer. A narradora descreve toda a cena na Universidade com uma ironia brutal, especialmente ao falar sobre uma professora feminista que diz ser sua admiradora. Costello ainda faz uma declaração radical, que serve de crítica ao seu próprio passado (e, por consequência, ao de Coetzee e seu Foe): “Não podemos parasitar os clássicos para sempre. Precisamos inventar algumas coisas nossas também”. Já no segundo capítulo, Coetzee apresenta através de Costello uma crítica aos estudos literários focados na identidade nacional, ao mostrar uma Costello que não se sente à vontade ao falar sobre “nós, os africanos”, quando ela escreve sobre assuntos ocidentais (como Joyce) e não trabalha diretamente com estes temas.
Isso não quer dizer, claro, que Coetzee seja um antiacadêmico, muito menos que esteja em uma campanha contra os estudos culturais ou algo assim. O que faz o autor sul-africano tão fascinante de ler é o fato de que ele apresenta uma crítica “de dentro”. Assim como Wallace, é fascinado por muitos aspectos da teoria acadêmica, mas se revela crítico a diversas facetas deste universo. E, como em todos os textos de Coetzee, não há uma mensagem clara ou uma resposta, apenas ambivalência, dúvida e muitas, muitas perguntas.
* Na imagem da home que ilustra este post: a obra de Guy Laramee, da série The Great Wall

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Simplismente Ghery



Simplismente Ghery

Cine Milton HATOUM

Cineastas buscam Amazonas de Hatoum


Com ajuda do escritor, Marcelo Gomes e Guilherme Coelho procuraram locações em Manaus e arredores
Os romances "Órfãos do Eldorado" e "Relato de um Certo Oriente" devem ser filmados a partir de 2012 Marcelo Gomes (de chapéu, à esq.) embarca coma equipe para viagem pelo rio Negro

GABRIELA LONGMAN
ENVIADA ESPECIAL A MANAUS

Milton Hatoum trabalha para terminar seu próximo romance, "O Lugar Mais Sombrio", com lançamento para 2012. Longe da sombra, porém, sua literatura se espalha, ganhando novas traduções, ensaios e releituras.



Anunciada em agosto de 2010, a transformação de "Dois Irmãos" em minissérie da Globo demora a sair -não há previsão para o início das filmagens. Enquanto isso, o cinema ocupa seu espaço. Diretor de documentários, Guilherme Coelho ("Fala Tu") viu no romance "Órfãos do Eldorado" o que buscava para sua primeira ficção.



Premiado com "Cinema, Aspirinas e Urubus", o pernambucano Marcelo Gomes encontrou Hatoum num evento e confessou: sonhava em adaptar o "Relato de um Certo Oriente". Ganhou um olhar arregalado -e o consentimento do escritor.



Mas por que filmar justamente o "Relato"? "Porque é infilmável", responde. "É um livro sobre pontos de vista. E o que é o cinema se não isso, um ponto de vista?"



Embora sejam dois projetos distintos, a literatura de Hatoum e a amizade entre os diretores transformou-os numa empreitada conjunta. Ao longo de quatro dias, a Folha acompanhou os dois cineastas por Manaus e arredores, ciceroneados pelo escritor.



Ao grupo juntaram-se Maria Camargo, corroteirista dos dois filmes, Karen Harley, montadora dos filmes anteriores de Marcelo (e codiretora de "Lixo Extraordinário"), e a assistente de direção de Coelho, Letícia Simões.



Entre fotos, anotações, perguntas e registros, cada um tentava, a seu modo, se aproximar ao máximo da paisagem "hatouniana".



Coelho, que pretende filmar em 2012, saiu em busca de possíveis locações; Gomes, ainda em primeira pesquisa e filmagens previstas só para 2013, atrás da "poética do cotidiano" da região -cheiros, cores, sabores da Amazônia recordados por Hatoum. "Não há literatura sem memória. Imaginação e memória são irmãs siamesas", lembra o autor.



A incursão passou pelo centro histórico da cidade, pelo antigo bairro dos ingleses e culminou num passeio de barco pelo rio Negro.



Há uma diferença crucial de ambientação: para o "Relato de um Certo Oriente", Gomes precisa da atmosfera de Manaus, mas precisa sobretudo de um casarão, o velho casarão de Emilie, a matriarca da família libanesa em torno da qual se estrutura o livro -uma casa é um mundo.



Para "Órfãos do Eldorado", Coelho precisa de uma pequena cidade ribeirinha, a Vila Bela do livro, onde vive a dinastia dos Cordovil, em seu palácio branco. Precisa de figurantes indígenas e algumas cenas de porto. Busca ainda um lugar perdido no tempo, a ilha esquecida no meio do rio Negro onde se esconde Dinaura, fonte de todo amor e toda ruína do narrador.



"Costelas de areia branca e estirões de praia em contraste com a água escura; lagos cercados por uma vegetação densa; poças enormes, formadas pela vazante, e ilhas que pareciam continente. Seria possível encontrar uma mulher naquela natureza tão grandiosa?", nos pergunta Hatoum nas últimas páginas de "Órfãos...".



Seria, parece responder o cinema, caminhando em rumo norte.



A jornalista GABRIELA LONGMAN viajou a convite da produtora Matizar

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

O Nobelizado PAMUK e a arte da ficçao


ENTREVISTA Folha de S.Paulo

'Cada vez há mais romances lidos no mundo', diz Pamuk
Otimista com o futuro do gênero literário que o levou ao Nobel, escritor turco lança livro sobre a arte da ficção
O autor, que vem ao Brasil para o Fronteiras do Pensamento, lança "O Romancista Ingênuo e o Sentimental"

Orhan Pamuk perdeu a conta de quantos já lhe perguntaram, comovidos: "Kamal é você?"
Kamal é o sujeito que remói um amor perdido em "O Museu da Inocência", o romance mais recente e o primeiro depois do Nobel.
"'Kamal é você?' é a pergunta de um tipo de leitor ingênuo, que não se dá conta de que a escrita é artifício", o escritor turco lembra à Folha, por telefone, de Nova York.
O contrário do ingênuo é o reflexivo, ou sentimental, para usar a definição do poeta alemão Friedrich Schiller no século 18.
Um tipo não deve, porém, substituir o outro. O ideal é, recomenda Pamuk, que coexistam num mesmo leitor. "Aprecie o livro, como faz o ingênuo, e reflita sobre por que o aprecia, como faz o sentimental."
Não só a leitura se enquadra nessa tipologia, como a própria construção de romances, como demonstra em "O Romancista Ingênuo e o Sentimental", novo volume que reúne as conferências proferidas em 2008 como escritor visitante em Harvard.
Pamuk, usando a pintura como metáfora e fio condutor, explica como os grandes romances são construídos para fazer o leitor se sentir dentro, e não fora da paisagem, e os leva a buscar o "centro secreto", o sentido.
Há romances que, para um leitor não especializado, é difícil de entrar, certo? "Esse é um eterno problema da literatura. Não há como solucionar. Um escritor tem o direito, se quiser, de escrever como James Joyce. Mas mesmo os irlandeses que nunca leram Joyce sabem que é importante e o respeitam".
Caiu o interesse pela ficção, como certa vez previra Gore Vidal, para quem romances vão se tornar restritos como a poesia se tornou?
"Isso é mentira. Os romances não estão morrendo", reage Pamuk. "Cada vez há mais romances escritos e lidos no mundo. É o que escuto de meus editores na China, na Índia. Demograficamente, há bilhões de pessoas que só agora começam a ter acesso aos romances."
Pamuk é também mais otimista que seu colega de Nobel, Mario Vargas Llosa, que esta semana, na Feira do Livro de Guadalajara, disse temer a banalização da literatura pela internet. "A internet nos faz ler mais. E torna a compra de livros mais barata. Vão mudar coisas, mas o romance não vai desaparecer."
JOSÉLIA AGUIAR
COLUNISTA DA FOLHA
O ROMANCISTA INGÊNUO E O SENTIMENTAL
AUTOR Orhan Pamuk
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 34 (152 págs.)
TRADUÇÃO Hildegard Feist